Livro II

É que de tanto viver no meio das letras acabei virando livro.
Como seu livro. Livro de cabeceira. Aquele livro preferido, que você leva pra cama antes de dormir e deixa num canto qualquer. O livro que você rabisca e judia, mas depois procura desesperadamente. Porque não sabe viver sem. Porque precisa dele pra se entender. Para viver.
Eu, que na verdade só queria que você pudesse realmente me ler pra me ter. Me ler inteira, não como os outros. Mas também nas notas de rodapés e nas entrelinhas.
Me ler nas páginas rasgadas e naqueles versos que parecem insignificantes…mas que só dizem sobre mim.
Pois como pode saber o mínimo sobre mim se nunca me leu?
Justo eu, que sou só palavra. Eu, que só sei fazer amor com as letras.
Eu , que só posso ser quando escrevo, que sem a escrita não posso saber quem sou, ou de onde venho, pra onde vou.
É que só posso ser sua quando souber me ler. Só posso ser quando souber me ter.

Para você

E só por hoje eu me permiti usar você no lugar do “ele”. Na verdade eu precisei. Porque você não entende quanto tudo isso é complicado para mim. Porque precisa me ler para entender. Para sentir do jeito que eu sinto. Porque para você tudo é simples. Mas para mim ainda é tão difícil. Porque estarmos juntos é difícil, mas estar sem você é ausência. É também estar sem mim. Porque ninguém antes havia me despertado tamanha intensidade de desejo. Tanta necessidade de sensação física. Física e emocional. Porque me trouxe esse anseio mais fervoroso. Conseguiu. Essa pulsação da alma que eu sempre busquei. Esse desejo que hoje se tornou vital. Mas só o que eu te peço é: apenas me ame. Ou me mande embora. Mas não diga que “me precisa”, não deixe que eu me apaixone. Por favor, não deixe eu me agarrar a esse amor para depois descobrir que ele acabou antes mesmo de eu saber. Antes mesmo de eu saber o que é te amar.

Grito

Eu queria. Uma palavra, um texto. Um soneto de amor, uma alegoria. Mas não sou poeta. Não sei de rimas, nem de métricas. Eu só escrevo pelo amor ou pelo arrebatamento da dor.
Eu só sei que essas palavras que me surgem eu não sei bem de onde vem. Talvez do coração. Só sei que elas me atravessam como enxurrada, incrustadas num violento fluxo sanguíneo. Como se todo meu corpo passasse a ser possuído e a pele fosse cortada pela força da letra que vem à superfície. Porque escrevendo eu me confesso abertamente incompatível a eles. A verdade é que não sei o que escrevo. Não é crônica, nem poema. Acho que nada mais é do que um grito.

Faz de conta

Eu, que vivo por sentimentos da ordem do inefável apenas existo como estrangeira nesse mundo. Nesse mundo de ilusão. De fantasias e de faz de conta. Num mundo onde eles se dizem felizes mas tomam cada vez mais Rivotril.  Num mundo de olhos secos e corações encharcados. Num mundo onde se tem obrigação de parecer bem mas só vive mesmo tentando disfarçar as angústias da alma. Num mundo que condena sentimentos verdadeiros e onde qualquer intensidade é chamada loucura. Num mundo que diz venerar Deus mas põe a fé em questão ao menor sinal de obstáculo. Num mundo onde se diz amar, mas mal sabe o que é amor.